sexta-feira, 22 de janeiro de 2016


Bouchra Ouizguen, coreógrafa marroquina é grande. Nunca calçou pontas, nunca seguiu para Oeste, ou para Leste. Em Marraquexe, aprendeu, sentiu e não esperou, começou furiosamente a criar com base no horizonte que alcançava. De forma insuspeita, inocente até, nem sequer se apercebeu que o Mundo estava atento e lá, do horizonte que não alcançava, a fúria de Bouchra atacou como um sereno tornado.
O horizonte que incorporou não ía, não precisava, de ir além das pequenas aldeias marroquinas que, de passagem, de curiosidade, marcava com movimentos, sinceros, crus, genuinos e, por isso, belos. "Madame Plaza", reconstituição viral das tradições Aítas, valeram-lhe o primeiro prémio. O Mundo, para além do horizonte que alcançava estava atento. Bouchra compreendeu o silêncio, a luz, a morte e o corpo, e foi com o corpo que deu corpo ao Mundo que, desesperadamente queria alcançar, sem ruído, sem alvoroço.


Em 2012 procurou mais horizonte, procurou-o por perto, pelas montanhas, bares e escolas marroquinas de onde apontou no pequeno Moleskine, os sons e os movimentos que importam; apontou mais que isso, escreveu "alegria", no adjectivo fundamental do horizonte que alcançava, agora maior, igualmente pequeno, tradicionalmente marroquino. Mas Bouchra é mais do que Marrocos, Bouchra é Mundo, o Mundo que está atento a Bouchra. Bouchra é, agora, pedaço de Djalál ad Dîn Rûmî, poeta persa, poeta místico sufi, e peça que faltava para colocar em palco "Ha!". "Há!" é tudo isso, tudo isso que Bouchra é, tudo o que quer para nós e nós, pelo corpo, pelo som, suspiramos o inevitável: Bouchar Ouizguen é grande.


A dança de Bouchra já sai de Marrocos. Já atravessa o Mediterrâneo e já alcança velhos amigos, em Portugal. "Ha!" estará amanhã no Rivoli do Porto que, educado como é próprio de um velhinho de 86 anos, recebe a coreógrafa, em festa, festa portuense para Bouchra que retribuiu com a alegria que apontou no pequeno Moleskine. Já pronta para nos mostrar o que é isso de ser marroquino, que alegria é essa que nos soa a vento quente do sul, Bouchra é grande e as grandes são gererosas. Sem se esquecer que um dia alcançou os pequenos horizontes, Bouchra foi alargar os horizontes de quem os viu, repentinamente encurtados pela sombra de uma cela.


Fazia frio e chovia, coisas que Bouchra pouco conhece. Mas conhece os pequenos horizontes e foi por eles que, na prisão de Santa Cruz do Bispo, deu um workshop. Generosa, ofereceu o vento quente do sul e a luz intensa marroquina a quem busca novos horizontes e permanece sedenta por alegria, a alegria de "Ha!" que terá sido bem mais sentida ali do que quando, amanhã, o velhinho Rivoli, ainda preso pela etiqueta e solenidade de tão provecto aniversário, conseguirá absorver. Mas Bouchra sabe-o, tal como sabe que os horizontes marroquinos nunca serão os horizontes europeus, largos mas espartilhados, bem diferentes da poesia de Djalál ad Dîn Rûmî, ou dos odores recolhidos nos bares de Marraquexe. No entanto, desistir não é opção e o Mundo, atento, gosta da persistência de Bouchra. Eu também...

Toda forma que vês
tem seu arquétipo no mundo sem-lugar.
Se a forma esvanece, não importa,
permanece o original...

As belas figuras que viste,
as sábias palavras que escutaste,
não te entristeças se pereceram...

Abandona este filho que chamas corpo
e diz sempre Um; com toda a alma.
Se teu corpo envelhece, que importa?
Ainda é fresca tua alma.

Djalál ad Dîn Rûmî

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