Leio que John Cale está de volta com uma reedição do proscrito "Music for a New Society", editado em 1982, dando continuidade à tentativa, quase sempre falhada, de se afastar da estética Velvet Underground onde, na sombra de Lou Reed, foi sendo o guardião não-genial, da linhagem principesca dos "Factory Protected".
Em 1988, ainda em plena luta interior, John Cale vai ao Porto, ao Rivoli, mostrar aquilo que julga ser um falhanço mas, sabíamos nós na altura, continuamos a sabê-lo agora, roçava a genialidade que sempre lhe fora negada pelos holototes de Reed e pela rigidez criativa dos Velvet. O concerto era obrigatório, como quase todos numa altura em que Portugal não tinha arregaçado as mangas e conseguido o spot nas agendas dos que valem a pena.
Chega a ordem do chefe: "Vai falar com o gajo antes do sound-check".
Falar com Cale vinha com a promessa da presença no concerto e com a obrigação de mergulhar o mais possível nas entranhas obscuras de alguém que havia estado onde sempre quis estar e feito o que sempre quis ouvir mas nunca verdadeiramente conseguira fazê-lo. Sim, já tinha devorado "Fear", "Paris", "Artifitial Intelligence" ou "Even Cowgirls Get the Blues", mas devorado é uma coisa, ouvido é outra e nos 80 o tempo era escasso e o corpo impedia mais absorção.
Final da tarde. Antes do sound-check, lá estava o puto à espera do Cale. Gravador na mão, em cima do palco, onde só estava o piano. A espera não era difícil porque, nos 80, havia formas de nos mantermos cool, ou melhor, ainda há mas desabituei-me delas. Enquanto isso, acendo um cigarro - sim, nos 80 fumava-se onde nos apetecesse - espero e o tipo entra-me no palco. Ainda sem hipótese de lhe dizer quem era, Cale desata a olhar para o piano de todos os ângulos possíveis e imaginários. Não está de boa cara, a ressaca parece-lhe cool e evidente. Segue-se uma discussão bizarra entre Cale e um qualquer roadie de ar mais gasto do que Cale e a razão estava explicada: o piano estava deslocado do local previsto uns 5 centímetros.
A coisa está quase a acalmar e John Cale finalmente repara em mim. E foda-se, a primeira coisa que me diz é algo do género: "And you, who are smoking in my stage, are...?". Nesse momento não engoli o cigarro porque isso não era cool, mas recordo-me que o inglês que saiu da minha boca, para me apresentar, foi trémulo, ainda que com a pronúncia correcta. "Let's go then, 20 minutes", diz Cale já acompanhado pela RP que lhe volta a explicar quem era o asshole que estava ali a fumar - "Yeahh, i know, i know...".
O tipo senta-se no banco do piano, eu ligo o gravador, pouso-o no piano, sento-me numa cadeira meio na diagonal e antes mesmo de lhe fazer a primeira pergunta, enquanto confirmo os níveis da gravação, John Cale, acende um cigarro e olha em volta à procura de um cinzeiro.
Aos 73 anos, Jonh Cale está liberto de toda a bullshit que os 80 ofereceram, no caso deste ex-Velvet Underground, uma continuação dos 70. A reedição do "Music for a New Society" e a junção a um "M:Fans" com novas propostas para os velhos temas geram curiosidade em mim e o puto cool, agora nada cool, dá por si a pensar que, se a entrevista com o John Cale fosse hoje, continuaria a ser banal mas já não haveria cigarros no palco, nem mesmo um Cale colérico por um erro de cinco centímetros. Haveria, isso sim, o mesmo entusiasmo, agora adoçado, eventualmente, com troca de memórias, com Cale, uma vez mais, a ganhar.
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