sexta-feira, 6 de maio de 2016

Contemporâneo velho

Ir a um funeral de alguém
que não conhecemos pode
ser um ato de meditação


Havia, garanto, uma boa razão para estar presente naquele cemitério, mas a vontade era pouca, o tempo não ajudava, o do relógio e o outro. Ainda assim, havia tempo para um café, ali mesmo ao lado, num tasco que apenas o álcool deverá fazer esquecer os defuntos vizinhos não tomam pequenos almoços. Ao balcão, o café chega, e como em todos os locais onde somos intromissão, tal como nos funerais alheiros, o mais digno é mantermos os olhos baixos; não vemos ninguém, não olhamos para ninguém.

Foi o flyer que me chamou a atenção. Bom design e cores vivas onde o luto seria o mais apropriado.Centro de Meditação, anunciava-se. Retiros, aulas e workshops. palavras mágicas para a urbanidade que se exige a quem desconhece o vizinho, abusa do sushi e intromete-se no contemporâneo como se este fosse item indispensável no currículo.

Era penetra no funeral, no tasco e no flyer mas, estranhamente, depois das incompatibilidades que jurara existerem entre os três, reconheci-lhes afinidades. Talvez se mantivesse os olhos baixos e meditasse, a intromissão não o fosse.

Ainda tinha tempo, o caixão demorava a aparecer. Meti ao bolso o flyer para ler os detalhes. Foi o grafismo e as cores atrevidas. A bateria do telemóvel assustava, poupava-o, e, por isso, mantive os olhos baixos mas não meditei, voltei ao Centro de Meditação, e descobri-lhe o mais importante: budismo moderno.


O ecumenismo é a minha resposta religiosa, caso contrário, precisaria de misturar o catolicismo com o budismo e o resultado é, uma vez mais, incompatível. Suspeito que a minha lista de incompatibilidades é a mesma que a minha lista de moddus operandi. Ainda assim, a perplexidade instalou-se. Budismo Moderno. Questionei-me se seria algo parecido à refundação que Francisco vai cavando no catolicismo, mas ambas me parecem banhadas por águas poluídas pelas necessidades de marketing na angariação de fiéis, aproximando-se perigosamente a seitas feitas à medida. Budismo é budismo, catolicismo é catolicismo, islamismo é islamismo com aceitáveis variantes e interpretações que, no entanto, dificilmente comportam moderno como adjectivo.

O caixão chegou. Mantive o sentimento de intromissão - havia uma boa razão para lá estar -, mantive os olhos baixos mas a mente já voava nas asas de um budismo moderno, tão moderno que um Centro de Meditação de design elaborado desafia os fiéis de Tenzin Gyatso, também ele posto em causa, provavelmente por um monge metrossexual, de bíceps trabalhados, barba tratada na Barbearia Porto e que apenas usará manto laranja se algo parecido tiver desfilado no cubano Passeio do Prado. 

1 comentário:

  1. Por acaso acho que ir a funerais é das coisas que me causam mais desconforto, se calhar porque detesto ver pessoas a chorar ou sofrer. E como bem descreveste "manter os olhos baixos" nestes casos, pode ser a melhor opção... (Confesso que fiquei curiosa pelo facto de teres escrito várias vezes que havia uma boa razão para lá estar mas nunca falaste da tal razão). Budismo moderno, catolicismo moderno, islamismo mais do que moderno! Acho que cada dia acredito menos; respeito isso sim.. Mas acho que a melhor religion é "fazer o bem sem olhar a quem" :)

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